Carminha Levy é psicóloga transpessoal, psicodramatista, terapeuta corporal, arte terapeuta e mestra xamã desde 1981. É introdutora do neo-xamanismo no Brasil e criadora do xamanismo matricial, uma vertente das práticas xamânicas que restaura o poder do feminino. Fundou em 1990 a Paz Geia Instituto de Pesquisas Xamânicas, a primeira escola de xamanismo brasileira.
É casada desde 1958, teve seis filhos e onze netos, um dos quais ela cria como mãe. Muitos dos dilemas abordados nessa obra foram vividos por ela em primeira pessoa ou colhidos na sua prática terapêutica.
Laura Bacellar é escritora e editora de livros, tendo-se iniciado no caminho do xamanismo em 1998. É pioneira na difusão de cultura para minorias sexuais, sendo uma das sócias da Editora Malagueta. É autora de variadas obras, desde infantis até adultas, inclusive Escreva seu livro, dirigida a autores iniciantes, e Mãe d’água, uma história juvenil escrita com o índio Tkainã sobre a cultura dos cariris, dando ênfase às suas tradições xamânicas.
Trecho da introdução
O neo-xamanismo
Xamanismo é uma palavra que se refere a muita coisa diferente, algumas até mesmo de aspecto bizarro. Quando se fala sobre xamãs, muita gente pensa em índios dançando em volta de uma fogueira, um pagé soltando fumaça pelo cachimbo ou grupos fazendo meditação no alto de uma montanha. Um cd de música xamânica pode ter batidas de tambor, o som de tigelas tibetanas, mantras ao som de rock, o toque de didgeridoo e mais um monte de gêneros musicais. Xamanismo chega a ser como massa de pizza, combinada com uma infinidade de coberturas.
Como então explicar uma prática que é tão antiga e ao mesmo tempo tão na moda em países os mais diferentes? O que uma leitora brasileira tem a ver com índios norte-americanos ou do Xingu?
Aprender xamanismo é fazer pajelança? Essa gente toda entra em transe tomando jurema ou ayahuasca ou peiote?
Sim e não. Tudo é possível, mas não é de forma alguma necessário que um habitante de cidade grande se pinte como índio nem que necessite de plantas psicoativas para praticar xamanismo.
Essa é uma prática ancestral, anterior a todas as civilizações, e por isso vem acompanhada de tantos rituais próximos da natureza, como acender uma fogueira em torno da qual um grupo se reúne. Nossos antepassados sem dúvida fizeram isso muitas e muitas vezes, marcando nossa memória genética com a associação entre fogo e clareza, foco das atenções, centro do círculo em torno do qual se podiam resolver os problemas do grupo. Os índios atuais apenas mantiveram as tradições xamânicas que na verdade fazem parte do passado de todos nós, e que no momento estão sendo resgatadas e colocadas em uso de uma maneira nova, adaptada às cidades.
É por isso que encontramos xamanismo misturado a tantas culturas de países diferentes.
O xamanismo usa símbolos
O que se nota quando se acompanham os rituais de comunidades que não praticam religiões institucionalizadas, como por exemplo os índios brasileiros, é que muitas das práticas são de ligação deliberada com algo maior do que o humano. Apesar da visão estereotipada comum na cultura ocidental a respeito de comunidades primitivas, o que antropólogos já observaram vezes sem conta é que nativos da Sibéria, moradores das ilhas da Polinésia, maoris, inuítes (os indígenas esquimós), lapões que moram acima do círculo polar ártico, descendentes de incas, os ona da Terra do Fogo, os aborígines da Austrália, todos tinham e ainda mantêm práticas de contato com o além do humano – o sagrado – através de símbolos. Não é verdade que considerem o vento ou a chuva deuses a serem adorados, mas sim que prestem atenção às forças da natureza como a voz da Divindade, como palavras que eles procuram entender.
As comunidades tradicionais, assim, mantêm formas mais instintuais de se relacionar com a natureza, não tão baseadas no intelecto como as desenvolvidas através das grandes religiões modernas. Mircea Eliade, no cuidadoso levantamento intitulado Xamanismo – técnicas arcaicas de êxtase, aponta para o uso complexo de símbolos nas práticas de povos ao redor do mundo. O que há em comum entre elas é a entrada em um estado alterado de consciência – o transe xamânico – e a interação com os mesmos grandes símbolos. Aparentemente, depois que se passa pela porta que se abre para outra realidade, o que se encontra do outro lado é semelhante seja a pessoa de que cultura for.
Por exemplo, tanto na Terra do Fogo quanto na Lapônia os xamãs falam de três mundos nos quais eles transitam: o do meio é o nosso, onde vivemos todos. O superior é a região dos mestres e guias iluminados, que enviam mensagens e fazem curas. O profundo é o mundo dos animais e dos seres das entranhas da terra, que também proporcionam curas e indicam caminhos. O xamã entra e sai dessas diferentes regiões para resolver conflitos da comunidade, problemas de saúde, resgatar pessoas perdidas e dar conselhos a quem peça.
A forma tradicional de entrar nessa realidade é pelas batidas ritmadas de um tambor. O toque repetitivo repercute no cérebro de quem ouve e provoca um transe leve, o tal estado alterado de consciência de que falamos. Por essa razão, o tambor é chamado em muitas culturas de “cavalo do xamã”, uma vez que permite a viagem a esses outros mundos não visíveis para os olhos comuns.
Isso tudo pode parecer esquisito para quem está sentada numa sala distante da Lapônia ou da Austrália, mas o interessante do xamanismo é que funciona de maneira direta: se você colocar um cd de toque de tambor ou mesmo bater ritmadamente um tambor, entrará num estado de transe leve.
Não é a toa que há um gênero musical chamado trance music, de batida muito marcada.
A intenção clara
Entrar num leve transe, no entanto, não é tudo, senão qualquer danceteria ou rave seria um centro de xamanismo. O xamã não se deixa levar, mas viaja para estados alterados de consciência com uma intenção muito clara do que deseja alcançar. Ele abre a porta da outra realidade com um pedido muito bem delineado na mente, vai até lá buscar o que precisa, agradece e volta. Não há turismo nessa viagem, apesar de esses passeios pelo inconsciente poderem ser muito bonitos ou divertidos.
Isso funciona tanto lá nos Andes quanto numa cidade brasileira, tanto para alguém que passou a vida sendo treinado para isso quanto alguém que se arrisque a seguir os passos explicados nesse livro. A intenção de entrar em outra realidade e ver o que acontece à nossa volta de outro modo é a mola propulsora dessas viagens.
Mudança da forma usual de pensar e agir
O xamanismo é mágico em um aspecto, porque faz as coisas acontecerem fora das leis de causa e efeito. Uma pessoa relaxa em seu sofá ouvindo tambor, vê algumas cenas na sua imaginação e – catapimba! – sem explicação lógica, de repente algo muda nos acontecimentos do mundo “real”.
Ou não tão de repente, com sutileza, toda a energia que governava a interação entre as pessoas envolvidas se modifica.
Só quem experimenta e presta atenção pode acreditar, por isso não vamos ficar descrevendo “milagres” aqui. Só dizemos que é essa a forma como as viagens xamânicas agem: o xamã faz algo no mundo simbólico e o mundo real reage em consequência.
Carl Gustav Jung, o famoso psiquiatra criador da psicologia analítica, já apontava para o poder dos símbolos do inconsciente profundo, chamando-os de “máquinas transformadoras da realidade”. É exatamente isso que um praticante de xamanismo faz, transforma a realidade a partir dos símbolos.
Não é religião
Apesar de propiciar o contato com figuras poderosas do sagrado, válidas para toda a humanidade, como por exemplo anjos, o xamanismo não é uma prática religiosa institucionalizada. Para quem gosta de liberdade, é perfeito. Não há culto, os mestres são apenas aqueles que encontramos na nossa imaginação ativa, não há gurus ou livros sagrados, nem instruções escritas em pedra.
O xamanismo é uma interação muito viva e dinâmica com figuras que respondem, mostram-se, falam conosco – e que estão dentro de nós, no nosso inconsciente profundo.
Exatamente por isso, quando buscamos a cura ou a resolução de problemas pelo xamanismo, não depositamos confiança em nada externo. Ninguém virá nos salvar ou guiar ou dizer o que é certo.
Nós descobrimos o que é melhor para nós mesmas em cada circunstância dentro de nós, entrando em contato com nosso mestre e curador interno. O xamanismo é a prática mais democrática que existe, porque pressupõe que cada um que queira – que assim estabeleça com intenção clara – pode entrar em contato com o sagrado e o curador.
Novo relacionamento com o mundo
O xamanismo mantém nos dias de hoje o respeito que nossos antepassados nutriam pela Natureza.
Nossos ancestrais passaram muitos anos pedindo e agradecendo as bênçãos recebidas da Mãe Terra, antes de adotarem os maus modos modernos de achar que têm direito de extrair o que quiserem do planeta. Quando o contato com a Natureza era considerado sagrado, a Terra era vista como um ser vivo, que nos dava tudo o que precisávamos e recebia nosso amor. Hoje nos distanciamos dessa postura e como consequência dilapidamos o maravilhoso planeta em que habitamos, com os resultados que já estamos sentindo.
A prática do xamanismo nos coloca de volta próximas dessas forças, ouvindo os ventos, os animais, o sol. Abrir a nossa imaginação a essa comunicação não-humana nos torna mais conscientes para tudo o que já acontece em nossa volta. O respeito torna-se inevitável, porque Mãe Terra está viva e nos ouve e fala conosco.
Novo relacionamento conosco mesmas
A prática do xamanismo leva a uma nova forma de pensar. Em vez da lógica cartesiana que rege a maior parte dos conhecimentos modernos, nos abrimos para o instinto e para a percepção de sutilezas. Em vez do pensamento, exercitamos a imaginação, uma força muito mais poderosa, que nos leva a soluções criativas. Em vez de uma coisa depois da outra, causa e efeito no tempo que conhecemos, começamos a experimentar as coincidências, o que Jung chamou de sincronicidade.
E prestamos atenção a nós mesmas. O xamanismo ajuda a descobrir a sabedoria dentro de nós enterrada lá no inconsciente. A ouvir o que o corpo realmente pede, a dar pausas e conceder tempo para a introspecção. Deixamos de nos ver como máquinas de produtividade sempre abaixo do desejável e passamos a nos enxergar como seres humanos.
O xamanismo nos ensina a ver e respeitar nossas limitações, as dos outros e as do planeta. Esse respeito básico pela vida começando por nós mesmas vai permeando nossas relações e acalmando as trocas nervosas e raivosas tão comuns na pressa e na exigência do dia a dia.
Praticamos um novo tipo de ecologia interna, que se reflete fora e melhora todos os relacionamentos.
Xamanismo matricial
O xamanismo, assim, tem muitas formas e práticas, todas válidas. A primeira lição que você vai receber de nós então é: faça apenas o que a deixar confortável. Explore os limites do seu medo, coloque-se em situações novas, mas sempre dentro do que o seu coração pede.
Essa é uma das principais formas de atuação do xamanismo matricial, a linha que nós, autoras desse livro, seguimos e que foi organizada na atualidade por Carminha Levy. O xamanismo tem um lado iniciático bruto, cheio de provações, que você pode encontrar por aí mas não aqui nesse livro. Esta obra segue o coração, o acolhimento da Grande Mãe.
A sabedoria pode vir do amor e ser encontrada em meio a experiências suaves, de apoio e parceria. Nós não acreditamos que seja preciso sofrer para se aprofundar no auto-conhecimento nem para resolver os problemas de todos os dias. Os sofrimentos já aparecem sem a gente ir atrás deles, para que procurar mais?
Nesse livro você vai encontrar, assim, um xamanismo adaptado para a vida de hoje nas cidades, no estresse, na rotina. Propomos soluções que possam ser encaixadas num tipo de vida comum. E, mais ainda, esperando que cada leitora desperte a compaixão por si mesma e comece a se tratar bem. O maior problema das mães de hoje é não se verem nem ouvirem nem tratarem como seres humanos. Esperam ser mães perfeitas.
Como já dizia Jung, “o importante não é ser perfeito, mas ser inteiro”. Seres humanos nunca são perfeitos e é esse nosso ponto de partida para essa obra: a mãe possível.
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