terça-feira, 31 de agosto de 2010

A cabala do dinheiro - Nilton Bonder

PARNASSÁ a cabala do sustento

Como parte da trilogia "A CABALA DA COMIDA", "A CABALA DO DINHEIRO" e "A CABALA DA INVEJA", este segundo volume trata primordialmente da relação do indivíduo com o seu mundo e o sistema de valoração do universo que o cerca.

Inspirado no ditado judaico "De três maneiras é um homem conhecido: por seu COPO, por seu BOLSO e por sua IRA" (KOSSÓ, KISSÓ VE-KAASSÓ), estaremos aqui abordando o BOLSO (KIS-SÓ) e o quão reveladora é nossa atitude para com ele. Em todo BOLSO surgem questões de sobrevivência e suas fronteiras - do excedente, da posse, do poder e da insegurança.

Diz esta mesma tradição: "O mais longo dos caminhos é o que leva ao bolso". Não há meios de
chegar ao bolso sem uma reflexão sobre a vida e seu sentido. Nossa relação com o bolso é reveladora de quem somos e onde estamos neste imenso Mercado de valores que é a realidade.

Nesse sentido, novamente, a tradição judaica tem muito a contribuir. Famosos de forma caricata por seu amor ao dinheiro, os judeus viram seus patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó) tornarem-se protagonistas de piadas de avareza e voracidade; tiveram a título de zombaria seu símbolo máximo de impureza, o porco, elevado à categoria de companheiro maior através do cofre em forma de porquinho; e ganharam longos narizes para farejar e orientá-los nos esgotos do subsolo dos sistemas financeiros.

Sem querer entrar em considerações apologéticas, que levariam, com certeza, à exposição da parcialidade do autor, gostaria de convidar o leitor instruído nos caminhos deste mundo a compartilhar de uma reflexão mais objetiva e menos julgadora. Falo ao leitor que reconhece que muito além das classificações de bem ou mal a experiência humana é marcada pela constante correção de nossas intenções na medida em que estas se concretizam em contato com a realidade.

Nossa capacidade de transformar esta experiência em cultura e tradição e expô-la de tal forma a permitir uma crítica intergerações, formadora que é da moral e da ética, possibilita aos seres humanos o autoconhecimento de sua humanidade.

Neste sentido os judeus são imprescindíveis na memória e experiência do Ocidente.

Sobre eles projetaram muitas das fantasias coletivas deste Ocidente. Muitas das vivências
sublimadas e contidas pelo indivíduo civilizado tomaram forma neste "outro". Outro que pareceu exorcizável e que talvez só não tenha sido a partir da consciência de que o fim do problema-judeu era também o fim da solução-judeu. Adianto a idéia de que os judeus talvez não tenham sido um problema do Ocidente, mas solução deslocada. Não me cabe, porém, estender estes pensamentos já elaborados por trabalhos de grande consistência. A mim interessa ressaltar que "os traços negativos" dos judeus em muitas situações são reveladores de um esforço cultural exatamente no sentido oposto. Tal qual fantasiamos sobre o rabino que nos bastidores do templo come porco, ou o padre que tem encontros secretos no confessionário, ou o líder político que tem suas transações fraudulentas em porões sob a tribuna onde defende o povo, grande é a cobrança aos que se propõem assumir uma postura que, ao menos nominalmente, desafia nossos instintos e reações animais. Ou seja, a cultura (que faz exatamente isto) gera em nós um desejo por sua falência, pelo desmascarar do anti-humano de suas proposições teóricas acerca do certo e errado, do construtivo e destrutivo.

Os judeus, com sua tradição fundamentada na ética, instauradora de uma ética ocidental, trazem vários exemplos desta inversão: 1) inventaram a lei fundadora "não matarás", mas a eles é atribuído o grande "assassinato" da História. Os judeus que atravessaram a Idade Média, caracterizada por uma urbanização sem cuidados higiênicos e sanitários e cujos costumes tradicionais, porém, se destacavam exatamente por seu conteúdo higiênico, são retratados, nesse mesmo período, como imundos que se rejubilam em sua imundice. Os judeus possuidores de prescrições alimentares severas são os mesmos acusados de antropofagias rituais com crianças cristãs. Por fim, aos judeus é atribuída a reputação da obsessão pelo dinheiro; seu D'us, que não pode ser representado por imagem, toma a forma do logotipo cifrão.

E é verdade: os judeus respeitam o dinheiro! Percebem neste um conteúdo revelador da
verdadeira distância entre o coração e o bolso.

O verdadeiro sentido do dinheiro, da PARNUSSE, do sustento, tem tratamento ético na tradição dos judeus que não só foi pioneiro como corajosamente humanista. A CABALA DO DINHEIRO é uma tentativa de observar os "insights" dos rabinos sobre a ecologia e a saúde das trocas e da interdependência, reconhecendo, assim, que pelo dinheiro se estabelecem situações cotidianas que desmascaram demagogias e ilusões e acabam por expor-nos de uma maneira que só a prática, o empirismo, pode fazê-lo. Somos o que reagimos, somos o que acreditamos, e nosso dinheiro é uma extensão de nossas reações, de nossas crenças. Seja pelo dinheiro que entra ou pelo dinheiro que sai, nossa compreensão do mundo se dá; e ele é um dos grandes determinadores do que há do lado de fora, do valor que as coisas e as pessoas têm para nós, do valor que temos em relação a coisas e pessoas.

Os rabinos fazem extensa reflexão sobre o dinheiro e lhe dão um tratamento semelhante
ao ministrado ao corpo. Reconhecem, portanto, além da importância da alma e da intenção, a
própria realidade do corpo, meio imprescindível através do qual percebemos quem somos e que
rumo devemos tomar.

Convido-os, portanto, a passear por um mundo conhecido, o mundo do nosso bolso.

Grande "tour" pelo mundo dos mercados, dos reflexos do dinheiro nas dimensões da emoção,
afetividade e espiritualidade. Caminhada por um POMAR que possa fazer com que se afaste de
seu dinheiro a pecha demoníaca, sombra projetada de nossas próprias almas, e que nos permita
aceitar e refletir sobre os limites da riqueza, da solidariedade e da vergonha de nossa humanidade.

O dinheiro em si é uma idolatria não só quando amado mas quando desprezado.
Explicam os rabinos: "Qual a causa da morte? A vida". Qual a causa do dinheiro? O desejo de
justiça. Certos elementos têm a capacidade de absorver para si traços da própria natureza
humana. Estes elementos tornam-se então muito importantes.

Os judeus respeitam o dinheiro. Dinheiro real, que irriga de possibilidades da
subsistência ao tempo livre para o estudo espiritual, que é feito fertilizante e seiva, e em última instância - vida.

Que dinheiro é esse que pode ser assunto de textos sagrados? Que dinheiro é esse de que se ocupam os sacerdotes? Que dinheiro é esse que vai ser moeda também no Mundo Vindouro ou no Paraíso? Como lidar com um mercado da existência que desvaloriza o sentido, que deflaciona nosso tempo e valores, que inflaciona a insatisfação e que torna recessivo o nosso potencial? Respostas a algumas destas perguntas os rabinos nos explicam através de sua busca de uma MOEDA FORTE.

PRÉ-REQUISITOS DO GUESHEFT

"Aquele que queira viver em santidade, que viva de acordo com as verdadeiras leis do
comércio e das finanças."
(Talmud Bavli, B.K. 30a)

"Vamos fazer um guesheft (um negócio)..." é uma frase na terra que desencadeia nos céus grande alvoroço. Sagrado é o instante em que dois indivíduos fazem uso de sua consciência na tentativa de estabelecer uma troca que otimiza o ganho para os dois. Fazer negócio, nos moldes imaginados pelos rabinos, coloca à prova todo o esforço da cultura, da espiritualidade e do senso de que a
responsabilidade do indivíduo vai muito além do próprio indivíduo. Só dois santos podem entrar em guesheft, não evitar guesheft por covardia e sair do guesheft com o máximo de ganho relativizado pelo máximo ganho do outro e o mínimo de transtorno ou consumo para o universo.

Este tipo de transação, que pressupõe a utilização não predatória e a satisfação das
necessidades dos que interagem, instaura uma nova natureza. Natureza onde não estamos apenas à mercê do caos externo de uma sobrevivência casual ou determinada pela capacidade puramente física de um indivíduo, mas sim uma natureza onde os conceitos de justiça e a capacidade humana de "perceber" o outro tentam introduzir a presença do sagrado na realidade.

A esta nova natureza dá-se o nome de MERCADO. Quanto menos desenvolvido no sentido rabínico, mais próximo o MERCADO estará de sua natureza primitiva - uma selva.

MERCADO, portanto, é onde gira a capacidade de sobrevivência dos indivíduos de acordo com sua própria percepção do que é sobrevivência. Sua sobrevivência é sua capacidade de arcar com seu sustento físico e de suas responsabilidades. Estas "responsabilidades" é que são fundamentais para que as trocas se dêem num MERCADO rabínico e não da Natureza. A entrada de sobrevivências que não foram taxadas por suas "responsabilidades" envenenam o MERCADO e somam-se ao caráter caótico do que pode nos acontecer. Tão forte é a noção rabí-nica da proximidade entre o MERCADO da NATUREZA, que a seguinte história é relatada:

A um rabino muito justo foi permitido que visitasse o purgatório (Gehena) e o paraíso (Gan Eden). Primeiramente foi levado ao purgatório, de onde provinham os gritos mais horrendos dos rostos mais angustiados que já vira. Estavam todos sentados numa grande mesa. Sobre ela estavam as iguarias, as comidas mais deliciosas que se possam imaginar, com a prataria e a louça mais maravilhosa que jamais vira. Não entendendo por que sofriam tanto, o rabino prestou mais atenção e viu que seus cotovelos estavam invertidos, de tal forma que não podiam dobrar os braços e levar aquelas delícias às suas bocas. O rabino foi então levado ao paraíso, de onde partiam as mais deliciosas gargalhadas e onde reinava um clima de festa. Porém, ao observar, para sua surpresa, o rabino encontrou todos sentados à mesma mesa que vira no purgatório, contendo as mesmas iguarias, tudo igual - inclusive seus cotovelos, invertidos também -, apenas com um detalhe adicional: cada um levava a comida à boca do outro".

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