(Mikhail Bakhtin)
Este artigo tem como propósito, numa perspectiva bakhtiniana, apresentar uma discussão acerca da polifonia e do dialogismo que configuram as narrativas que compõem o filme “Narradores de Javé”.
Apesar da impossibilidade de uma sinopse que contemple toda a multiplicidade de temas, narrativas e vozes em “Narradores de Javé”, à guisa de introdução, é necessário contextualizar: trata-se do segundo longa-metragem de Eliane Caffé, rodado entre junho e setembro de 2001, em Gameleira da Lapa, interior da Bahia. Javé é um vale que ficará submerso nas águas de uma represa em função da construção de uma usina hidrelétrica. Os moradores, tentando salvar a vila, decidem preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos heróicos de sua história acreditando que assim o vale seria considerado um patrimônio histórico, e preservado. A maioria da população é analfabeta e encarrega o personagem Antônio Biá, ex-funcionário dos correios, para registrar tudo em um livro.
É essa impossibilidade de uma sinopse que instiga a perspectiva deste trabalho. Em todo o filme, em todo o texto, chama atenção a coexistência de inúmeros narradores, narrativas, formas de narração e temas que, no decorrer da enunciação, configuram uma “heterogeneidade discursiva”, expressão criada por Bakhtin em seus trabalhos sobre literatura, como destaque, nos romances de Dostoievski em que várias “vozes” se exprimem sem que nenhuma seja dominante (Bakhtin, 1970).
E é essa pluralidade de vozes que configura o texto que nos convida a uma reflexão pautada em duas teorias fundamentais da obra de Bakhtin: polifonia e dialogismo.
Em síntese polifonia é um termo tomado de empréstimo da música – duas ou mais partes ou vozes soando de forma simultânea. Na literatura é a multiplicidade de vozes em um texto, mediadas pelos pontos de vista e modos de presença no mundo discursivo. Bakhtin dá a Dostoievski o título de “criador do romance polifônico”; aponta na obra do escritor russo a configuração das personagens como ideólogos, que defendem vozes que não são necessariamente as do autor. Assim como no romance O Jogador, de Dostoievski, considerando as reflexões de Serpa, 2007, os personagens de “Narradores de Javé” possuem interdependência e espaço para a realização de seus discursos que, embora conflitantes, não anulam ou negam o discurso do outro. São discursos plenivalentes e convergem para um fim.
Em “Narradores de Javé” os discursos são intercalados, fundem-se, sucedem-se, não existem independentemente daqueles aos quais são endereçados, o que corresponde às teorias de Bakhtin quanto à polifônica e dialogismo. A palavra é a revelação de um espaço no qual os valores de uma dada sociedade se explicitam e se confrontam.
É nesse espaço de enunciação dialógica e polifônica que os moradores, narradores de Javé, resgatam sua memória.
Mas o que é a memória? Para entender a dificuldade de Antônio Biá, ex-carteiro, “escrivão”, em registrar a história de Javé é preciso responder também à questão o que é a memória do Vale de Javé? A memória do Vale se instaura nos eventos orais, é construída no embate das versões.
Nas reflexões de Caldas, 2003, sobre história e memória: “A memória é composição, fluxo rítmico de anexação e criação, momento narrativo, momento textual: determinada ordem “escolhida”, certa maneira de ler e dizer a experiência com e no vivido (...)”.
De acordo com Alexandre Werneck, em sua crítica ao filme, “as verdades produzidas pelos moradores do vilarejo são compostas de memória. De uma memória mítica, é verdade, onde se encontra com seu segundo assunto, a fala. A memória é feita na fala, é produzida pela narração. E ambas são ficções aparentes.”
O filme retrata a intensidade da relação entre história e memória e evidencia as disputas entre os moradores que defendem cada um o seu ponto de vista para o registro da história, buscando a certeza de se inscrever, se eternizar na configuração da memória coletiva.
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da língua. (Bakhtin, 2006:127)
Depreendemos as vozes dos personagens (moradores de Javé) que possuem independência e espaço para realização de seus discursos, embora entre eles haja conflitos. As várias versões da origem do Vale de Javé se estruturam em função de um objetivo (impedir que Javé seja submersa pelas águas da represa), têm um fio-condutor (resgatar a memória da origem do Vale) e estabelecem um diálogo que busca uma identidade dos moradores aliada ao papel de cada um na história de sua fundação. As várias vozes convergem para um único fim, textualizar e a busca de uma retextualização em função de um “dossiê”, de um registro de nascimento e de vida.
Apontamos aqui o primeiro conceito sobre dialogismo, expresso por Bakhtin, de que o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem, princípio constitutivo do enunciado. Conforme o pensador russo, todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado e, em cada enunciado ouve-se pelo menos duas vozes. Toda palavra está relacionada à outra, à de outro locutor, existindo assim uma interação entre um discurso atual e outros formulados anteriormente.
Conforme Bakhtin:
O fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica. A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder a resposta, e assim ad infinitum. Ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim. (Bakhtin, 1992:357).
Uma das primeiras questões que suscita uma pluralidade de incursões na análise do filme é: quantas narrativas há em “Narradores de Javé”? A linguagem cinematográfica é um primeiro plano narrativo, considerando os recursos, a fotografia, iluminação, cortes bruscos de um cenário para outro e de um momento para outro, congelamentos de imagem. Em outro nível no qual se inserem várias outras narrativas, um dos protagonistas, Zaqueu, justifica em sua narrativa sobre o Vale de Javé a necessidade do domínio da leitura.
“– Às vezes, é bom. A gente nunca sabe, né. Eu mesmo, que não sou das letras, posso contar um rebuliço que uma escritura foi capaz de fazer! (...)” 0:02’:47’’ – 0:03’:01’
Dentro da narrativa de Zaqueu as narrativas do próprio Zaqueu, e de Vado, sobre a conversa que tiveram com os engenheiros que mostravam os estudos sobre a região.
Vado:
“– Os engenheiro abriram os mapa na nossa frente e explicaram tudinho nos pormenor. Tudo com os número, as foto, um tantão delas! (...)” 0:04’:36’’ – 0:04’:40’’
Zaqueu:
“– Então eu perguntei pros home se não tinha nada no mundo que a gente pudesse fazer pra salvar Javé das águas; (...)”. 0:05’:00’’ – 0:05’:08’’
Na narrativa de Zaqueu as narrativas dos demais moradores, o “povo tagarela” de Javé, sobre a origem do vale: a versão de Vicentino, que se diz descendente de Indalécio, o grande guerreiro, fundador de Javé, entrecortada pelas intervenções de Antônio Biá;
O relato de Deodora, com as intervenções de Firmino, Vado e Alípio sobre Indalécio e Mariadina, a heroína que cantou as divisas de Javé (tradição de demarcar oralmente o território para tomar posse);
No decorrer da narrativa de Zaqueu outras surgem dialogando sobre a origem de Javé na versão de Esturlana, Pai Cariá (a descendência afro-brasileira).
Vicentino:
“A história de Javé começa junto de Indalécio. Foi ele quem guiou nossos antepassados, um punhado de gente valente que era sobra de uma guerra perdida. Tinham sido expulsos das suas terras de origem por ordem do rei de Portugal que queria tomar o ouro que era deles. (...)”. 0:20’:00 – 0:20’:08’’
Em “Narradores de Javé” há narrativas pelos fragmentos que retratam a cultura brasileira: figas e objetos de culto afro, oratórios, o sagrado coração de Jesus nos casebres, a poesia nordestina na fala de Antônio Biá, os provérbios; o progresso - a história escrita como documento versus a tradição oral -, e, sobretudo a memória. São alguns elementos que compõem as instâncias que dialogam, se opõem, complementam-se, cindidas, e atadas na configuração das narrativas.
E há narrativa em Iorubá, pelo Pai Cariá, traduzida por Samuel:
“Indaléu era chefe de guerra e queria guiar nossa gente pra nossa terra de origem. Mas só que Indaléu, o próprio Indaléu não sabia o caminho de volta.”. 1:04’:00’’ – 1:04’:14’’
“Narradores de Javé” narra narrativas que narram narrativas, fazendo dessa vertigem recursiva uma reflexão sobre o narrar, seu valor, sua verdade e sua função; dialoga com concepções de narrativa, propondo a construção de uma narrativa que se distancie do fato (ocorrido) e sugerindo uma narrativa cujo mundo narrativo deva ser construído com elementos fantásticos ou non sense.
Biá:
“- Olhe: uma coisa é o fato acontecido, outra coisa é o fato escrito.” 0:25’:50’’ – 0:25’:58’’
À questão colocada anteriormente “Quantas narrativas há em ‘Narradores de Javé’?” acrescenta-se: quantos narradores há, compondo uma polifonia? Tal qual em um romance, a polifonia em “Narradores de Javé” é a “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis...”, cujas vozes não são meros objetos do discurso do autor, mas “os próprios sujeitos desse discurso”, do qual participam mantendo cada uma sua individualidade caracterológica, sua imiscibilidade.” (Bezerra, 2005)., autor que no caso de um filme, se divide nas atribuições de diretor, roteirista, fotógrafo, iluminador, figurinista, dentre outras.
Tal qual em um romance polifônico, “o autor não interfere nas vozes nem as controla, deixa que elas se cruzem e interajam, que participem do diálogo em pé de igualdade contanto que permaneçam imiscíveis” (Bezerra, 2005). Em Narradores ainda mais do que isso, o filme fundamenta a concepção de narrativa como um movimento que precede enunciado, conforme André Parente:
A narrativa é uma função pela qual é criado o que nós contamos e tudo o que é preciso para contá-lo, ou seja, seus componentes: enunciados, imagens, etc. A narrativa não é o resultado de um ato de enunciação: ela não conta sobre personagens e coisas, conta as personagens e as coisas. As personagens e os acontecimentos da narrativa são contados da mesma maneira que os de um quadro são pintados e os de um filme, fotografados. Para que a narrativa seja comunicada, é preciso que o destinatário leia ou escute os enunciados e veja as imagens, de tal modo que ele possa se instalar no sentido (=movimento de pensamento) no qual o mundo “representado”, assim como os enunciados e as imagens materializadas, foi criado. (...) (Parente, 2000:35-36).
Em Narradores são recorrentes esses “movimentos de pensamento”, em cada narrativa dos personagens, na troca de versões sobre a origem do Vale, no diálogo que estabelecem entre eles e deles em relação ao espectador. A marca de autoria de um filme, uma produção cinematográfica, se restringe aos créditos no final da exibição.
Assim como na epopéia, a ação do personagem das narrativas se justifica em função de uma transcendência que o move. O que está em jogo não é um destino pessoal, mas a causa da comunidade. A epopéia reapresenta o passado heróico, o mundo prestigioso dos começos, dos antepassados em comunhão íntima com a força superior que os governa; celebra os feitos mais representativos de um povo ou nação e por isso manifesta um profundo espírito de exaltação nacional. Ainda que Deodora não se lembre de que guerra fugia o povo de Javé:
“O senhor sabe como todo mundo que Javé surgiu foi de uma gente que saiu fugida de guerra... Eu só não me lembro bem que guerra era essa...” 0:32’:00’’ – 0:32’:13’’
Indaléu ou Indalécio e Mariadina representam esse herói, redentor do povo do Vale de Javé.
Antônio Biá:
“Eu sou escrivão de prosa, Sr. Gaudério, to na labuta de escrever os nobres e grandes feitos do Vale de Javé, história, como bem sabe o senhor, muito contada e ouvida, mas até hoje nunca escrita e lida.”. 1:13’:50’’ – 1:14’:03’’
A(s) narrativa(s) de “Narradores de Javé” instaura(m) um diálogo entre os três grandes gêneros literários na conceituação clássica: épico, em que predomina a objetividade, lírico, no qual prevalece a subjetividade e o dramático, que os entrelaça.
A trama envolve, de um lado, o povo guerreiro, protagonista, cada um, a seu modo, narrador onisciente, herói, e Indalécio ou Inda léu, herói ou anti-herói, de acordo com cada versão. Do outro lado, antagonistas, a construção da represa, os engenheiros, a modernidade.
Javé é um lugar que está em todo lugar e (pela concepção do imaginário, da ficção) em lugar algum. É a cidade que conta, que se narra, indo do presente ao futuro, e do futuro ao passado, mesclando o tempo da memória, diacronias, sincronias, da sua agonia, do “último suspiro”, representado pela torre da igreja, a última parte a ser devorada pelas águas da represa, ao seu renascimento.
Zaqueu:
“O tempo passou e o povo de Javé não teve tempo de fazer mais nada. E um dia elas vieram. (...)”. 1:28’:50’’ -1:29’:18’’
Souza:
“Elas quem, diacho?”. Zaqueu: “As águas.”. 1:28’:50’’ -1:29’:18’’
É ali, às margens da barragem, que Javé recomeça. Javé é seu povo, suas ruas de terra, suas casas, seus bares, barbeiros trabalhando no meio da rua, crianças brincando, todo o cenário em meio ao sertão baiano. Antônio Biá, o ex-carteiro, doravante tem a missão de produzir a “certidão de nascimento”, e o registro das narrativas, até aquele momento, orais. Diante do que fora inevitável, Javé submersa, Biá se submete ao poder do progresso, da urbanização e modernidade, inicia a escrita sobre “a parte da antiga Javé”.
Zaqueu:
“E desde então essa é a história de Javé que se conta, mas que também pode ser lida e relida por essas serra e por essas grota sem fim. Tá assentada em livro, correndo o mundo pra nunca que ser esquecida. É isso e não tem mais que isso! Quem quiser que escreva diferente.”. 1:33’:20’’ – 1:33’:42’’
Um dos grandes méritos do filme é enfocar as dificuldades que vivem os grupos sociais fundados na oralidade em preservar a memória e, ao mesmo tempo, reviver a tradição das narrativas orais populares transmitidas de geração para geração. O filme cria um espaço de reflexão sobre as tensões estabelecidas entre práticas do mundo da oralidade e do mundo da escrita; dialogam, contrapõem-se as várias lógicas inscritas no mundo da escrita e da oralidade.
Zaqueu ao expor sua definição sobre “científico” chama a atenção para essa tensão entre a tradição oral e o registro escrito, o que se expressa pela contradição em sua explicação.
“_Vamos colocar no papel os enredo, gente! Desencavar da cabeça os acontecimentos de valor. Botar na escrita, fazer uma juntada de tudo que é importante pra provar pras autoridades por que Javé tem de ter tombamento!” 0:08’:01’’ – 0:08’:14’’
“Científico é... é... é coisa assim... com “sustança” de ciência... versada, assim, nas artes e práticas... (...)”;
“_Científico é... ó, é assim, como assim... é... é que não pode ser as patacoadas mentirosas ocês inventam! Essas patranha duvidosa que ocês gostam de dizer e contar!” 00:08’:33 – 00:08’:35
“Narradores de Javé” denuncia o antagonismo entre uma sociedade que se funda e se impõe pelo registro escrito, é a que tenta preservar sua tradição oral, mas que acaba por se submeter ao progresso, aos avanços tecnológicos, à escrita. São dois mundos e Javé é o mundo que vive a oralidade desvanecente, o mundo que busca o registro para que suas memórias não fiquem submersas, o mundo das divisas cantadas (demarcação de terras), em que vale a palavra falada, e não há documento. Se por uma questão metodológica não se deve confundir dialogismo e polifonia, por ser o dialogismo o princípio constitutivo da linguagem e polifonia se caracterizar por vozes polêmicas em um discurso, em Narradores, a metodologia sofre abalos. Não temos um narrador que “do alto”, “soberano” domina personagens, tramas, tempo e espaços, mas uma profusão de vozes, diálogos entre inúmeros elementos que compõem instâncias discursivas. O presente, passado e futuro de Javé, cenários, espaços, imagens são vozes, e dialogam entre si, tudo, todas as personagens criam e contam, pulsam a trajetória do Vale.
Referências
ABREU, L. A., CAFFÉ, E. Narradores de Javé: roteiro – 17ª versão. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
BAKHTIN, M. La poétique de Dostoievski. Paris: Éd. Du Seuil, 1970. (Tradução de uma obra de 1929 e modificada em 1963).
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005 p.191-200).
CALDAS, Alberto Lins. História e memória. Primeira Versão. Editora da Universidade Federal de Rondônia. Ano I, Nº 181 – Dezembro – Porto Velho, 2003 Disponível em:
DVD Narradores de Javé. 102 min. NTSC Cor. Produzido e distribuído por Videolar S.A., de Manaus, sob licença de Videofilmes Produções Artísticas LTDA, 2005.
PARENTE, André. Narrativa e modernidade: Os cinemas não-narrativos do pós-guerra. Campinas: Papirus, 2000. (Tradução Eloísa Araújo Ribeiro).
SERPA, Danilo Chiovatto. Mecanismos de construção da polifonia na obra O jogador de Dostoievski. Estudos Semióticos, Número 3, São Paulo, 2007. Disponível em:
WERNECK, Alexandre. Narradores de Javé. Contracampo Revista de Cinema Disponível em:
Polifonia e dialogismo em “Narradores de Javé”
José Maria Theodoro - Mestrando em Língua Portuguesa e Lingüística (PUC/MG)
Mais informações leia dissertação do trabalho acadêmico na UNG - Curso de Turismo, disciplina: Gestão Pública p/ Julio Cesar de Almeida, link:
http://www.4shared.com/document/p-B106tN/narradoresdeJAVE.html
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