terça-feira, 21 de junho de 2011

Procriação

Andreas Cellarius - Influência da Lua na procriação

Vamos dar aqui início a uma história, breve e provavelmente incompleta, sobre o nascimento: como era visto no início dos tempos, como era explicado, as tradições e as crenças, o papel de mãe e de pai e tudo o resto que me for possível investigar. E já há muito tempo que estava para falar disto, mas por uma resistência minha a tudo o que me lembre crianças, nunca o fiz. Agora que essa ferida vai ficando sarada, torna-se indiferente os filhos dos outros.

Antonio Carracci - The Rape of Europa. Pinacoteca, Bolonha
Se hoje para ter um filho é necessário haver apenas um espermatozóide e um óvulo, estando implícita a ideia de que tem de existir uma vagina e um pénis e por conseguinte, penetração, quando não havia estas modernices, a geração de uma criança passava obrigatoriamente pelo coito, ou como se dizia, coitu penis et cunni. Existia então a necessidade de contacto físico, de coexistência espacial, enquanto hoje sabemos que basta os fluidos se envolverem, não implicando essa envolvência a presença dos respectivos donos. Ainda hoje porém o nascimento é um mistério: o número de coisas e a variedade delas que pode existir na concepção de uma criança é tão grande que certos médicos dizem que um nascimento é um milagre. Se houve coisa que sempre me intrigou, para além do gira-discos, foi o parto natural. E se hoje associamos o coito à satisfação física de duas pessoas (na melhor das hipóteses) e/ou à fecundação, demorou muito ao Homem relacionar uma coisa com a outra. O Homem tinha relações sexuais porque via outro ser igual a ele, com as costas arqueadas que se encaixavam perfeitamente no seu tronco arqueado, a lavar num rio, acocorado, ou a catar outro ser. Mas o Homem não percebia que o seu ato é que era o responsável pela saída, após nove meses, de uma criança do útero da sua mãe. Atribuía por isso um papel mágico à mulher, pois era esta que transportava dentro de si o pequeno ser, e era dela que ele saía a rastejar.

Bartolomeo Ammanati - Leda with the Swan. Museo Nazionale del Bargello, Florença
Porque os mecanismos que regulam a relação entre o acasalamento e a concepção não estavam definidos, a Igreja principiou opor tomar o monopólio da educação dos seus crentes. E dos crentes dos outros também. Com vista a que o ato sexual não fosse banalizado por pudicícia do clero, mas sempre a dar resposta ao "Crescei e multiplicai-vos" dos Gênesis, a Igreja apropriou-se da questão. Era no entanto difícil perceber se estavam a cometer uma blasfémia ao refrear os ânimos dos crentes ou se estavam apenas a assegurar a ordem do Mundo através da colocação de cada coisa no seu tempo: o conhecimento mútuo, o crescimento em Deus, a virgindade até ao casamento, a concepção para maior glória de Deus, etc. Por um lado havia a Sagrada Escritura, por outro era também necessário dar ouvidos aos padres da Igreja como São Tomás de Aquino que defendia que os órgãos sexuais do homem e da mulher tinham sido dados por Deus, não para o prazer dos próprios, mas para a conservação e perpetuação da espécie humana, para povoar assim a Cidade de Deus e apressar o Juízo Final! O prazer teria de ficar de fora, uma vez que era associado à animalidade e que estava fora dos contornos da lei de Cristo. Nada nas Escrituras falava aos padres da Igreja de prazer, à excepção do prazer de amar a Cristo e esse era muito platónico. Não é por acaso que, sendo portadora da semente, a mulher era vista como a tentadora, a culpada pelo prazer, pelo divertimento a que também podia estar associado o sexo.
Assim filósofos, padres, fisiólogos, doutores e sábios apressaram-se a encontrar uma norma que regulamentasse as relações sexuais. Nessa norma estava escrito o tamanho que o pénis deveria ter, o número de vezes em que era aceitável ter relações sexuais (não sei se por semana, se por mês ou por ano), a continência que se devia ter no sexo (sexo, mas pouco), quais as posições amorosas que devem ser banidas e quais as que são mais dignas, quais as consequências do sexo para o marido e para a mulher, qual a estação do ano mais propícia para procriar, qual o momento do dia (se de barriga cheia ou em jejum). De lado, vistas como acessórias e por isso prejudiciais ficaram as carícias, a masturbação a dois, as posições menos dignas, a relação sexual durante a menstruação (razão pela qual nasceriam crianças com lepra ou ruivas) e que já existia no Antigo Testamento, o sexo desenfreado e o desejo ardente. Quem não obedecesse a estas regras, principalmente as mulheres pois eram tidas como incitadoras de tudo o que era negativo, como se o seu útero fosse a casa do Diabo, era ameaçado com o fantasma da esterilidade, o aborto espontâneo e o nascimento de crianças com todos os tipos de deficiências.

O casamento era assim a única forma de ter relações sexuais com o aval divino, desde que não constituísse fonte de prazer para que as praticava e para além disso, fosse a origem de uma nova vida. Por isso, problemas como a frigidez ou a impotência eram, até há pouco tempo, causa de anulação de um casamento. Segundo a Igreja de hoje, um casamento pode ser anulado se o homem for impotente, mas não se for estéril. É que mesmo não podendo ter filhos, o homem estéril consegue ter uma erecção, logo consegue consumar o casamento. Já o homem impotente não consegue ter a erecção, logo não pode consumar. Como vemos, para a Igreja a questão do casamento entre pessoas de sexos diferentes não está na procriação, não é esse o seu propósito, mas na capacidade de ambos os membros poderem ter sexo, dê lá por onde der.

Na Grécia Antiga e até ao século XVIII a fecundação era explicada segundo os princípios de Hipócrates e de um seguidor seu, Galeno. Para Hipócrates o embrião resultava da união de duas sementes, a semente masculina e a semente feminina, ambas colocadas no interior do útero. Para Galeno havia uma emissão de esperma tanto por parte do homem como por parte da mulher, mas neste encontro de esperma, a semente feminina era mais fria com vista a aquecer a semente masculina.

Cerâmica grega - 480 and 460 a.C.
Havia no entanto questões às quais os médicos gregos respondiam com menos clareza no raciocínio. No que diz respeito à produção de esperma, por exemplo, os médicos gregos, Platão e os pitagóricos acreditavam que era feita no cérebro, descia pela espinal-medula e alojava-se nos testículos que serviam apenas de simples reservatórios. Por razões como esta as ramificações auriculares da artéria temporal chamam-se ainda hoje canais espermáticos. Já para outros médicos como Anaxágoras e Demócrito, a semente é produzida um pouco por todo o corpo teoria esta muito útil pois pode explicar a hereditariedade a todos os níveis. Em 1563 continuava a acreditar-se nisto, se tivermos em conta o que o professor italiano Niccolò Massa defende: que todas as partes do corpo contribuem para a produção da semente, sendo que uma delas produz uma parte muito importante do todo, parte essa chamada "licor". Para este professor os licores juntam-se nos testículos sem se misturarem. E esse todo é que constitui a semente. Mas no útero os licores dispersam-se para formarem os diferentes órgãos. Engenhoso, não?

Pompeia
Isto mostra que se os gregos são os precursores da Democracia, das artes e do pensamento filosófico não são dos conhecimentos médicos. Ressalve-se as limitações técnicas, não se pode ignorar que havia muito de imaginação nas teorias gregas. Aristóteles achava que o feto resultava da união do esperma masculino - segundo ele um resíduo da digestão em grau último - com a menstruação da mulher. A maior parte dos filósofos e médicos gregos era omissa em relação ao papel da mulher na procriação. Seguindo uma teoria falocrática, para estes homens a mulher e o seu útero era apenas o receptáculo de um embrião que já estava formado no esperma masculino. Daí a Teoria do Homúnculo. A excepção, mais tarde, é Descartes que defende que tanto o licor masculino como o feminino são contributo importante para a construção do todo. Ele referia que tal como na fermentação do pão, às tantas já não havia massa velha (fermento, hoje conhecido por fermento de padeiro) e massa nova. Assim, na relação sexual nenhum dos fluidos era privilegiado face ao outro.

Foi em 1677 que Antoine van Leeuwenhoek descobriu ao microscópio os espermatozóides. A descoberta logo originou uma produção gigantesca de material sobre a mesma, sobre esses girinos (pequenos vermes e pequenos animais eram outras das denominações) que habitavam o corpo do homem. Para além do epítetos já referidos as pessoas referiam-se aos espermatozóides como sendo os “animaizinhos íntimos”, “os parasitas comensais”, os “infusórios”, os “vermículos” e outros mimos todos eles concebidos para designar esses pequenos animais que viviam dentro dos fluidos corporais masculinos, de cérebro pequeno e cauda comprida. Acredita-se neste tempo que cada “animal” destes tem uma alma própria (Leibniz aquiesceu, mas apenas na alma em sentido lato) e uma vontade também própria que faz com que o mais forte entre eles seja o vencedor e atinja, como prémio, a entrada no óvulo. Mais uma vez as deficiências do feto entram aqui justificadas pelo estado em que o espermatozóide atinge o óvulo: se a batalha foi dura, então é provável que a criança nasça com alguma deficiência.

Apesar de os homens (e as mulheres) muito terem equacionado sobre a procriação, o seu raciocínio nem sempre foi nem é ainda racional. Algumas teorias sobre a concepção do embrião têm tanto de fantasista quanto de perturbador e só podem ser o resultado de épocas opressivas ou de sociedades que usam a ciência e a religião para esconder as suas faltas. Estas invenções e mitos encontram-se em qualquer religião e em qualquer tempo. Note-se que ainda hoje nas revistas da especialidade, os supostos sexólogos e ginecologistas, médicos respondem a perguntas como "sentei-me na moto do meu namorado. Estarei grávida?" (depende... ele também estava lá sentado?). Desde a Antiguidade que como já dissemos, foi muito justa para o cidadão (homem com mais de vinte anos nascido na Grécia, tudo o resto eram metecos, mulheres ou escravos e por isso, não cidadãos), mas madrasta para a mulher, proliferaram lendas que estavam associadas à mitologia, mas também serviam o interesse grego em não justificar o papel social da mulher.

Charles Joseph Natoire - Boreas and Orinthyia 1741. Indianapolis Museum of Art
Vejamos... não estou aqui a fazer um manifesto feminista porque isso é uma grande chatice e eu não tenho paciência. Mas a verdade é que histórias inicialmente narradas pelos grandes escritores como Virgílio, Homero, Hesíodo ou Platão, passaram a ser Verbo. No que diz respeito à procriação dos seres humanos, dos mortais (isto porque a dos deuses vem mais daqui a nada), as mulheres são "autorizadas" a procriar com inspiração divina. Digo "autorizadas" porque obviamente se desconhecia todo o mistério que estava à volta da concepção do embrião. Mesmo o próprio útero era um mistério, uma coisa que sangrava, provavelmente dissuasora nas autópsias, no estudo do corpo morto. É certo que os gregos sempre preferiram esculpir homens e só mais tarde, com Fídias as mulheres passaram a ser tema e corpo de escultura. Por isso esta noção de concepção divina ou sem intervenção do homem justificou para os gregos os fenómenos injustificáveis. Virgílio fez passar a ideia, segundo uma descrição no texto Geórgicas que as mulheres (aqui sob a forma de éguas) engravidavam porque inspiravam o vento Zéfiro. Ficavam grávidas do ar! Outros filósofos diziam que as galinhas eram fecundadas apenas pelo cantar do galo e as perdizes, pelo cheiro do macho.

Na mitologia hindu a gestação de Buda durou dez meses e foi concebido em sonhos através da entrada no corpo da mãe (rainha Maya), de um pequeno elefante com seis dentes. Quando, após os dez meses, a rainha tentou colher uma flor de uma árvore, Buda nasceu da sua anca. O mesmo aconteceu na mitologia grega. Veja-se o exemplo de Dionísio, filho de Sémele, uma mortal que morreu enquanto Zeus se exibia perante ela. Ficou durante três meses na coxa de Zeus depois deste o ter retirado da mãe já morta. A própria mitologia grega tem os nascimentos mais estranhos da História (uma prerrogativa da mitologia). Atena, nasceu de elmo posto e já formada da cabeça de Zeus. Este tinha literalmente, comido a mãe dela, Métis. Afrodite nasceu do mar, pelo menos é assim que é pintada. Era filha de Urano; ou seja, era filha dos órgãos genitais de Urano que foram atirados ao mar após cortados por Cronos. Herácles nasceu graças a uma distracção de Hera (a legítima de Zeus) que para se vingar do seu marido andar metido com Alcmena, cruzou as mãos e os pés para ela não dar à luz. Só que distraiu-se e Alcmena lá deu à luz ao fim de sete dias de agonia. Na mitologia egípcia a promiscuidade era maior e nota-se no caso do nascimento de Osíris e Ísis, dois deuses primordiais. Osíris e Ísis eram gêmeos que no útero da mãe estavam tão unidos que quando nasceram, já Ísis estava grávida de Hórus. O pai era, como não podia deixar de ser o irmão e marido Osíris. Esta história fez com o médico cirurgião Cosme Viardel reconsiderasse a sua tese sobre os gêmeos e a bolsa amniótica de cada um, pois segundo aquilo que se dizia na época era que os gêmeos falsos tinham bolsas amnióticas separadas para manter as decências.

E assim como a religião criou, à sua medida, as regras para o "bom sexo" que estava relacionado com o casamento e com a procriação, a sabedoria popular também criou as suas normas que apesar de estranhas, estão muitas vezes correctas e vão onde nenhuma ciência vai. Claro que os fenómenos da sabedoria popular podem ser explicados cientificamente, mas o facto de existirem criam por si estranheza. Lembro-me de ouvir coisas que mais tarde vi serem verdade como: um bolo ou um pão feitos por uma mulher com o período menstrual nunca levedam, a premira vez que uma árvore dá fruto, o mesmo não pode ser colhido por uma mulher ou a árvore não dará mais fruto. Como as mulheres não podem, devido aos filhos, abandonar as terras e partir em busca de uma nova vida, têm que, em muitas sociedades, dedicar-se à terra. São por isso elas as guardiãs dos segredos telúricos e com a sabedoria feminina, os homens não brincam. A Terra (feminino) é fecundada pelo Sol (masculino) e está em constante produção; está permanentemente e procriar. Por isso, e por as mulheres estarem relacionadas com a sabedoria tectónica, em determinadas civilizações como as que professam crenças indianas os jovens esposos que desejem filhos devem passar a primeira noite numa caverna, numa gruta de nome “fona”; ou seja, vagina. Daí, do interior da Terra vai brotar uma criança. Dizem que os menires tinham esse significado: pedras que fecundam para sempre a Terra. para além disso tinham um poder afrodisíaco e médico, uma vez que curavam os homens que neles se sentassem de infertilidade e seriam benéficas para as mulheres que ali roçassem o sexo e pretendessem engravidar. Outras manifestações naturais como os rios, quedas de água e as respectivas nascentes possuem um significado e analogia óbvias. São os locais de onde as forças da Natureza emergem do interior da terra. Há populações que recomendam, aos casais desejosos de filhos, que tenham relações na água: se serve para os cardumes e para os patos, serve para os humanos. As mulheres que desejem ser fecundadas devem abrir as pernas frente ao mar ou a uma corrente de água, para que esta possa penetrar no seu sexo. Da mesma forma se diz que a água, que a rebentação das ondas do mar no ventre de uma mulher grávida provoca aborto. Para além desta água que brota do interior da Terra, existe uma outra forma de presença da água, à qual é atribuída um poder fecundante que na minha opinião faz mais sentido: a água das chuvas, especialmente amada nas regiões que sofrem com a seca. A devoção e interesse que certas populações mostram pela água das chuvas é fácil de compreender: não vem da própria Terra, mas do Céu, logo é uma forma de fecundação e é tão rara e preciosa, única no ano (na Primavera) que só pode ter um poder de fecundar os seres que por ela são atingidos. Voltando à mitologia, não esqueçamos que Danae foi fecundada por Zeus que se transformou numa chuva de ouro para chegar até ela. Desta união nasceu Perseu.

Com efeito, com o passar dos tempos e até pelo menos ao século XVII, acreditava-se que era possível as mulheres engravidarem pelo ar ou pela água. Na Idade Média, esta justificação era muito útil para as senhoras de bem cujos maridos partiam para a guerra. Quando se viam "solteiras" e com mais uma criança a caminho, só uma boa mentira corroborada pela Igreja podia salvá-las das más-línguas. Desta forma virgens tinham filhos, viúvas tinham filhos, mulheres sem marido tinham filhos... tudo isto sem o toque sequer de um homem. O homem exilado ficava convencido e tudo acabava bem na harmonia do lar. Por outro lado, afastava as mulheres de lugares como os banhos públicos ou as termas. Fazia com que elas andassem mais cobertas, pois tal como se pensou em relação aos males do corpo, a culpa era do banho. Muitas mulheres eram aconselhadas a não ter as janelas abertas à noite, se não queriam engravidar; poderiam engravidar apenas pelo inspirar. (Não deixa de ser curioso que um dia destes numa conversa com um médico ele dizia que respirar era fatal, era o que levava à morte.) A lenda de que o sémen - ou qualquer coisa muito semelhante - poderia andar pelo ar ou pela água - vinha de uma crença inspirada em Anaxágoras e chamava-se Panspermia. É-me difícil explicar o que era, mas esta crença dizia mais ou menos isto: pan (total)+sperma (semente) queria dizer que a vida estava em todo o Universo, que era fruto de um caldo arcaico, onde se tinham formado, com a ajuda de forças da Natureza (relâmpagos, furacões, chuvas) moléculas, aminoácidos, proteínas, genes por fim os seres microscópicos com um grau de complexidade e aperfeiçoamento cada vez maior. Era a geração espontânea aqui ilustrado por uma parte de um quadro de Bosch onde do lago as espécies nascem por geração espontânea. Assim, tal como o pólen retirado às flores andava pelo ar, quem sabe se os espermatozóides voariam.

Hieronymus Bosch - Triptych of Garden of Earthly Delights 1500. Museo del Prado, Madrid
Na minha opinião, e tenho a certeza que na opinião de muita gente, tenho a certeza que estas aberrações, ou pior do que isso, a ausência de um interesse científico sobre a forma como a mulher pode engravidar e sobre o seu aparelho reprodutor em comparação com as teses sobre o aparelho reprodutor masculino, são sexistas e criadas como encapotamento de uma incapacidade para penetrar no mundo feminino. Este "penetrar" também quer dizer isso mesmo que estão a pensar! São sexistas porque os homens que não compreendiam bem o seu papel na reprodução (porque é que elas é que são incubadoras e eles não é uma pergunta capaz de incomodar muitos homens, perante a gravidez dos cavalos marinhos, mas é igualmente uma pergunta capaz de ajudar muitos clérigos. Afinal, Cristo disse que amaldiçoaria Eva com as dores do parto). São por outro lado infantis porque, sabendo nós que as mulheres vinham com "mais peças", os homens nunca tentaram perceber a razão para cada uma delas e atribuíram isso a algo diabólico. A mulher é a incubadora, o incubo, o demônio que dará uma vida. Não é por acaso que a mulher está associada à serpente. Vejamos este excerto do Timeu de Platão:
"Também nas mulheres e pelas mesmas razões, a chamada matriz ou o útero é um animal que vive nelas com o desejo de fazer filhos. Quando fica muito tempo estéril após o período da puberdade, tem dificuldades em suportá-lo, indigna-se, erra por todo o corpo, (...) até que, quando o desejo e o amor unem os dois sexos, eles podem colher um fruto, como numa árvore, e semear na matriz, como num sulco, animais invisíveis pela sua pequenez (...)"

O mistério da negação das mulheres face ao sexo, comparativamente às ereções masculinas (porque o útero tem erecções internas, ah pois é!) involuntárias e "indesejadas" durante o sono (causadas por Lilith segundo alguns crentes), é algo de intrigante. O homem e a mulher só poderiam pecar se os dois quisessem, mas para os homens naquela altura, o enigma que constituía o fascínio por esta porta do corpo feminino, porta esta cuja abertura estava dependente delas, apenas da vontade delas, era assustador. Entre o ar e a água e o homem, o homem via-se ameaçado pelos elementos naturais. Entre estes elementos naturais encontramos a terra. Não estamos a falar na Terra como princípio feminino criador, mas como fonte de nascimento de crianças numa extensão daquilo que já acontece com as espécies vegetais. Vários deuses nasceram sob as árvores e na Alemanha acreditava-se que existiam criaturas semelhantes a duendes a viver dentro das árvores com nomes estranhos como "esposas-de-musgo". Existe um vocabulário que criou a tradição e corrobora o que aqui vamos falar: a vagina é associada à maçã cortada ao meio, ao morango e a alguns vegetais, o pénis é associado à cenoura, ao pepino e os testículos, a todos os frutos que sejam pequenos e redondos e por fim a fecundação é, nos termos mais infantis, a colocação de uma semente masculina na "barriguinha da mãe". Mesmo nas Escrituras, a mulher é vista como um campo fértil, a ser semeado pelo homem e segundo a sabedoria popular, o primeiro dia da Primavera é o dia do casamento dos pardais. Quando se fazem as colheitas, homens e mulheres participam em festas que não sendo propriamente orgíacas, são sempre vistas com muito entusiasmo estando os trabalhos divididos entre mulheres e homens: elas debulham o milho, eles malham-no. Diz-se que a romã dá ao homem a força viril, que o fruto da piteira, segundo a religião asteca foi utilizado para nutrir o primeiro homem e a primeira mulher, na Europa planta-se uma macieira sempre que nasce uma criança, o fruto da Oliveira era usado nos antigos rituais de fertilidade, no Japão o pessegueiro é símbolo da fertilidade, and so on, and so on...

A ideia que as crianças nascem das couves está relacionada com esta associação entre os frutos e os vegetais e a fertilidade, mas também com a falta de argumentos para explicar às pessoas - às crianças em especial - de onde é que elas nascem. Dizia-se que vêm de França transportadas pela cegonha. Aliás, os franceses utilizam muito os nomes dos vegetais como "mon chou" (minha couve) para se referirem a algo querido ou pequeno ou que amam. Por outro lado, embora essa seja uma realidade que nos é distante, para o paganismo a couve era utilizada para designar o órgão sexual feminino. Associam as duas coisas por causa do cheiro (eu nem sei o que dizer) e por causa do desenho da couve quando cortada.

Paolo Porpora - Still-Life with a Snake, Frogs, Tortoise and a Lizard. National Museum of Wales, Cardiff
Não era só a flora que tinha influência nos nascimentos; a fauna também tinha. Quer isto dizer que assim como era possível uma mulher engravidar de igual forma de um homem como de um elemento natural (um respiro, um gole de água, uma pedra, uma flor), também podia ficar grávida de um animal. A mitologia grega já nos diz isso, mas convém lembrar alguns exemplos. Não é que ninguém vá ler e ficar mais esclarecido, mas eu fico melhor com a minha consciência. A rã, por exemplo é um símbolo fetal no Egipto e tem para o Ocidente um significado evolutivo que muitas vezes não notamos. Quem não conhece a história dos irmãos Grimm em que o sapo (está certo que um sapo não é uma rã) é beijado pela princesa. O sapo é o estado intermédio entre o girino/espermatozóide e o humano (o sapo transforma-se em príncipe). A serpente, o ourobouros que já referi aqui é a serpente que morde a própria cauda. Como forma um círculo fechado, é estéril, mas como se fecunda a si própria pode ser vista como símbolo da fertilidade.

Ticiano – Danaë 1553. Hermitage, São Petersburgo

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