Comentários de Peter O'Sagae - Dobras da Leitura
« Juruá era um peixinho prateado que seguia um cardume igualzinho a ele. Ao mesmo tempo em que estava furioso por ter sido transformado em peixe pelo Anhangá, sentia-se maravilhado com o fundo do rio — como era lindo!
Não demorou muito e ele já sabia se comunicar na língua telepática dos peixes, e ficou curioso quando ouviu uma conversa no seu cardume:
— Lá está o boto subindo a superfície; pelo jeito, vai virar gente de novo e namorar as mulheres humanas, como ele faz toda lua cheia... »
Um dia, a onça-rei, o Iauaretê, transformou-se em guerreiro kamaiurá e casa-se com a bela Kamacuã. De dia, homem, de noite, bicho, ela logo desconfiou e acaba descobrindo o segredo da viração. Mas o fato, estranho e fantástico, não impede o amor entre eles e tiveram dois filhos:
Juruá e Iauaretê-mirim. Eles vão crescendo e separam-se por dois diferentes caminhos que existem no mundo: o caminho da justiça e o caminho da destruição. Juruá vira peixe, Iauaretê-mirim consegue uma pena mágica da Acuã e voa ao encontro de Jacy-Tatá, a senhora-estrela dos segredos dos pajés.
Com o movimento das transformações, homem e bicho se confundem porque são mesmo parentes: jabuti, coelho, boto, anta, raposa, todos compartilham de uma única sabedoria — e muitas situações engraçadas. Kaká Werá reconta assim uma série de fábulas brasileiras que nasceram com as culturas tupi, kadiweu, bororo e munduruku, espalhadas de norte a sul do país e compiladas, pela primeira vez, pelo general Couto de Magalhães, em 1873; mas Kaká Werá deu seu toque de índio e inventa uma trama nova para acomodá-las.
O efeito fabuloso é certamente conquistado pelas seqüências de viração mágica, mas o feitio de toda obra é como um novelo que se desenrola facilmente, da primeira à última página, devido a um jeito de narrar gracioso e preciso em que nada parece faltar — ou sobrar. Para usarmos de uma metáfora de Jacy-Tatá, como quem desperta estrelas dentro do tronco de árvores, Kaká Werá consegue ultrapassar os limites de um simples registro factual de antigas histórias, transformando-as em narração literária. As aventuras e desventuras de Iauaretê são acompanhadas pelos desenhos de Sawara, filha do autor, emprestando ao livro certo ar de uma simplicidade bem resolvida através do projeto gráfico de Iago Sartini.
Os textos escritos hoje pelos indígenas podem ser vistos como reflexo de uma postura mais afirmativa, adotada por algumas lideranças, em relação ao que significa ser índio. Esses registros visam mostrar, dentre outras coisas, o quanto as diferentes etnias que habitavam o nosso território, bem antes do descobrimento, contribuíram para a formação da cultura brasileira. Muitos desses textos são transposições, para a língua escrita, das histórias narradas pelos mais velhos às crianças e aos jovens, há centenas de anos, com o objetivo de preservar as tradições e valores do seu povo, além de ensinar o respeito pela própria cultura e pela vida em comunidade.
O ambientalista e conferencista de origem tapuia Kaká Werá Jecupé é uma dessas lideranças e autor, entre outras obras, de As fabulosas fábulas de Iauaretê: a onça que virou guerreiro Kamaiurá, casou com Kamakuã, a bela, que gerou Iauaretê-mirim, que perseguiu o pássaro Acauã para conseguir a pena mágica e voar até Jaci-Tatá, a mulher-estrela, senhora do segredo dos poderes dos pajés. Este livro, composto de 16 histórias/capítulos, além de trazer algumas fábulas de origem indígena, já recontadas por inúmeros escritores e há muito incorporadas ao nosso patrimônio cultural, traz também as aventuras de Iauaretê-mirim, inventadas pelo autor — “de posse do jeito ancestral” —, mas com personagens já existentes: o boto, o pirarucu, o Acauã, a mulher-estrela.
As histórias que falam da onça Iauaretê (que é uma das lendas do ideário guarani), de sua transformação em guerreiro, de seu casamento com Kamaiurá e do destino de seus filhos Juruá e Iauaretê-mirim apresentam certo encadeamento. As outras, nas quais a onça aparece como personagem representando a força bruta e a estupidez – uma vez que é sempre enganada por animais mais fracos, porém mais espertos –, podem ser lidas isoladamente. Estas histórias, que são bastante conhecidas (embora os animais variem de uma versão para outra), foram recolhidas pela primeira vez pelo General Couto de Magalhães, em 1873, e publicadas em 1874. Em viagens feitas do extremo sul ao extremo norte do Brasil, o General “descobriu que a origem dessas histórias vinha de quatro etnias distintas: os tupi, os kadiweu, os munduruku e os bororo”. Quem nos conta isso é o próprio Kaká Werá, num posfácio breve, porém interessantíssimo.
Além da presença da onça (ou de seus descendentes), as 16 histórias têm em comum a preocupação em transmitir ensinamentos, o que é um dos traços marcantes de várias culturas indígenas. Isto faz com que, algumas vezes, o texto perca em qualidade literária, como em: “Quando você se contraria, e faz coisas que não são da sua natureza, você deixa de se amar [...] Amar, minha filha, inclui cada um respeitar a natureza do outro”.
Nas passagens mais descritivas, o texto apresenta qualidades poéticas, como pode ser visto em “Anhangá sumiu como um sopro veloz” ou “Era o tempo em que as flores saem das árvores e das plantas”. Por outro lado, quando a necessidade de explicação torna-se mais importante, a poesia é prejudicada: “Já está na hora de você saber que todos nós, seres humanos, somos estrelas adormecidas dentro de um tronco de árvore, que é o nosso corpo físico”. Priorizar o lirismo subjacente às histórias, sem abandonar a forma narrativa tradicional, é o delicado equilíbrio a ser buscado pelos autores indígenas.
Um aspecto a ser questionado é o fato de o autor haver dado o nome de Iauaretê tanto à onça que virou guerreiro Kamaiurá (e personagem de conto de Guimarães Rosa), quanto à onça estúpida que é sempre lograda por outros bichos, uma vez que o único ponto em comum entre Iauaretê e o animal estúpido é o fato de ambos serem onça(s).
As ilustrações de Sawara, filha de Kaká Werá, que na ocasião tinha 11 anos de idade, têm traços característicos de desenhos infantis, feitos com lápis de cor e pastel, e geralmente mostram o que está sendo narrado. O projeto gráfico, como um todo, é cuidadoso e agradável aos olhos, e as páginas pares trazem uma vinheta lateral com desenhos de temática indígena.
ttp://kakawera.blogspot.com/
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